quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

“A alimentação dos Portugueses: do isolamento à integração”

 Como considero de grande importância o estudo da alimentação dos portugueses nas ultimas décadas para se entender o porquê do aparecimento/ DESENVOLVIMENTO de muitas doenças não transmissíveis da  nossa população, hoje deixo aqui um artigo de revisão da Professora Maria-Manuel Valagão, que considero de bastante interesse.


A Alimentação dos Portugueses: do isolamento à integração

Entre os anos sessenta e os anos noventa, passámos de um contexto alimentar, onde para grande parte dos portugueses a subsistência representava a própria substância da vida, para uma situação alimentar idêntica à dos países desenvolvidos.

As Balanças Alimentares constituem um instrumento de natureza estatística através do qual não só se pode conhecer de forma global a situação alimentar e nutricional de um país, mas servem também como: “... instrumentos orientadores de políticas de produção agrícola, das pescas ou da indústria alimentar; (para) avaliar os equilíbrios ou desequilíbrios nutricionais e seu impacte na saúde; avaliação dos resultados das recomendações nutricionais dos peritos e formulação de novas orientações face à situação apresentada; estudo da evolução dos níveis de alimentação e padrão alimentar nacionais e comparações com outros países...” (cf.BAP, 1990-1997, INE, Lisboa).


Estes instrumentos estatísticos fornecem-nos informação acerca das disponibilidades médias de alimentos e não dos consumos. Consequentemente, não nos possibilitam uma análise da situação intra-nacional, uma vez que não distinguem nem zonas geográficas, nem grupos sociais, nem sexos, ou ainda grupos etários. Todavia, apesar desta limitação, estes indicadores estatísticos são de uma importância inestimável, pois constituem a única fonte quantitativa de que dispomos para medir determinadas tendências globais. Por outro lado, inerente ao próprio significado de tendência, está o facto de que é necessário proceder a uma comparação de valores, por forma a ilustrar o horizonte dessa evolução.

Durante este período os portugueses integraram-se, de certa forma, nas novas lógicas de consumo alimentar, o que nos levou a partilhar alguns dos problemas e dos riscos alimentares que atravessam as sociedades modernas. Mostraremos que alguns dos principais problemas de saúde relacionados com a alimentação, já não se referem às carências alimentares, mas sim à ameaça das doenças relacionadas com a abundância alimentar. Por outro lado, esta integração no padrão alimentar ocidental, afasta-nos dos nossos padrões alimentares tradicionais mediterrânicos, que partilhávamos comos outros países do sul da Europa.

Foi nos anos sessenta que, em Portugal, se iniciaram os movimentos migratórios internos e as migrações externas. Os intensos movimentos migratórios dos anos sessenta, tiveram uma influência muito marcada nas práticas alimentares, o que se relaciona com os seus efeitos em termos sócio-espaciais e culturais, ou seja, com as transferências de população em idade activa, do mundo rural para as cidades e para as periferias urbanas. Por isso as práticas alimentares actuais têm que ser interpretadas à luz das concentrações terciárias e da emergência de uma cultura urbano-industrial.
Estamos, portanto, perante um período de referência (1960-1997), a partir do qual se pode estabelecer uma análise das principais transformações nos consumos alimentares, relacionando-as com as modificações nos sectores de actividade.

Anos sessenta, anos noventa: do isolamento à integração alimentar

A tendência global da alimentação dos portugueses, é a de que não só a disponibilidade global em alimentos aumentou significativamente, como também aumentaram as disponibilidades em alimentos de alto valor biológico, nomeadamente os que fornecem proteínas animais. Por outro lado, a disponibilidade em calorias passou de uma média global de cerca de 2 700 calorias/pessoa/dia nos anos sessenta, para quase 3 800 em 1997.

Excedemos largamente a média europeia (3.443 calorias no triénio de 1992-94). Também excedemos as nossas necessidades, que foram calculadas há cerca de vinte anos em 2800 calorias. Ora, no decurso do período em referência, é muito possível que as necessidades energéticas médias dos portugueses, tenham vindo ainda a diminuir e que, actualmente, sejam muito menores do que eram nos finais dos anos setenta. Isto é, a redução das actividades manuais, associadas a um trabalho mais “terciarizado”, à melhoria das condições de alojamento, ao aumento da deslocação feita em meios de transporte e, em termos gerais, a uma vida mais.
sedentária, contribuíram para que, na actualidade, as necessidades médias em calorias, sejam consideravelmente menores do que eram na década de sessenta.
Associam-se a todos estes aspectos o facto da população portuguesa estar a envelhecer e os níveis de prática de exercício físico serem reduzidos, o que contribui ainda mais para uma redução das necessidades energéticas.

Quanto às capitações diárias de alimentos, destacamos o facto de as disponibilidades em carne e as disponibilidades em gorduras terem quase triplicado. Excepção feita ao azeite, cuja disponibilidade teve uma nítida redução (de uma média de cerca de 18 gramas/pessoa/dia, em 1960-69, para cerca de 9 em
1990). Na última década, voltou novamente a registar-se uma capitação média de azeite mais aproximada das disponibilidades dos anos sessenta (cerca de 15 gramas/pessoa/dia em 1997).

Numa perspectiva nutricional, se alguns dos aspectos aqui evocados traduzem uma evolução claramente positiva, nomeadamente a maior disponibilidade em proteínas de alto valor biológico, outros, devem ser alvo de uma reflexão. Trata-se das consequências que os excessos de alguns consumos alimentares têm ao nível
da saúde individual. Por outras palavras, a subida do rendimento familiar e a democratização no acesso aos bens alimentares permitiram ultrapassar algumas das carências alimentares. No entanto, a esta disponibilidade e diversidade de bens alimentares associam-se novos problemas de saúde, o que está relacionado com o
facto de esta alteração se ter traduzido globalmente em hábitos alimentares que revelam um certo desequilíbrio por excesso de alguns nutrimentos. Ou seja, ao aumento das calorias totais do regime, associado à percentagem de calorias fornecidas pelas gorduras, de 25% em 1960-69 para 33% em 1997, e ao acréscimo do consumo de carnes, associa-se determinado tipo de doenças: são as chamadas
“doenças da civilização” ou “doenças da abundância”ii.

Todavia, não podemos ser simplistas. Nem tudo se deve ao aumento do consumo de gorduras saturadas e de carnes. Isto porque se sabe que para este conjunto de doenças contribui também uma miríade de factores, inerentes à vida social urbana.

Enunciemos, por exemplo: “a comida mal mastigada”, a “falta de água”, “o excesso de sal e/ou de açúcar” (veiculados muitas vezes através do consumo de alimentos processados) ou ainda “a falta de exercício”. Mas, se não podemos atribuir exclusivamente aos excessos de gorduras saturadas (e de carne) a formação das doenças metabólicas degenerativas, é indispensável considerar estes excessos, como uma causa maior.

Neste sentido, as estatísticas relativas à evolução das principais causas de morte, são muito elucidativas em relação a estas tendências. Com efeito, a mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias que constituía a principal causa de morte até aos anos 50, é praticamente inexistente. Actualmente este lugar é ocupado pelas
doenças cérebro-vasculares, pela diabetes e por outras doenças metabólicas degenerativas inerentes ao modo de vida actual. Morre-se menos, mas morre-se por razões distintas das anteriores (cf. Ferrão, 1996). Aliás, Portugal é o país da Europa do Sul com o maior índice de mortalidade por doenças cérebro-vasculares, o que só por si traduz uma grande mudança nos hábitos de vida e nas práticas alimentares dos portugueses.

Se estabelecermos uma ligação entre os vários factores de mudança referidos, nomeadamente entre o que comemos e o nosso estado de saúde, percebemos que nos integrámos em novos padrões alimentares ou num modelo alimentar que favorece o aparecimento de doenças metabólicas degenerativas, devido ao grande
aumento do consumo de alimentos ricos em gorduras saturadas. Simultaneamente, afastámo-nos do padrão alimentar mediterrânico, ou das principais características do modelo alimentar mediterrânico, que se sugere actualmente como "equilibrado". As principais características do modelo alimentar mediterrânico, que sugerimos como "equilibrado", tem por base a já conhecida trilogia: pão, vinho e azeite. Privilegia-se o consumo dos cereais e derivados, do pão, das massas, do arroz, dos produtos hortícolas e das frutas. Pelas suas características nutricionais, provou-se que estes alimentos tinham um efeito protector em relação a algumas doenças metabólicas. Completemos então esta análise, com os indicadores comparativos entre Portugal e os outros países europeus mediterrânicos (Espanha, Grécia e Itália) relativos às capitações médias (triénio 1992-94) de alguns produtos alimentares de maior interesse no regime mediterrânico. Verifica-se que Portugal excede as capitações médias destes países e do conjunto dos países comunitários, no pescado, nos cereais, no arroz, na batata e no vinho. Aliás, a capitação média deste último excede quer a média de uns quer de outros. No entanto, encontra-se abaixo da média comunitária (114 Kg) no que se refere aos produtos hortícolas, com 106 Kg, e abaixo das capitações registadas nos outros países da Europa do Sul (177 kg). A mesma tendência se verifica na capitação média de frutos, dado que Portugal ficou 12% (com 109 kg) abaixo da média comunitária (124 kg), e muito aquém dos outros países mediterrânicos (155 kg). Quanto ao azeite, enquanto que a média conjunta dos países do mediterrâneo é de 14 kg, em Portugal não ultrapassa os 4 kg.

Parece pois não haver dúvidas sobre o facto de que esta nova realidade nos impõe a necessidade de modificar, ou de adequar os modelos de consumo alimentar, no sentido de uma alimentação mais frugal do que a que temos actualmente. Se é quase um lugar comum, apelar para a necessidade de valorização das nossas práticas alimentares tradicionais, é no entanto imprescindível fazê-lo. É neste sentido que sugerimos o regresso ao regime mediterrânico. Este, anunciando-se como uma nova ode à tradição (que privilegia o pão, as massas e o arroz como base da alimentação) não constitui só um regresso à nossa especificidade cultural.
Representa sobretudo um horizonte de futuro, onde doravante, para todos os que se preocupam com o equilíbrio alimentar, a modernidade terá que coexistir com a tradição.


i Com efeito, este valor de 2800 calorias, que foi calculado nos finais dos anos setenta, supõe já um acréscimo de 500 calorias, para compensar os desperdícios da vida actual, pois a média das necessidades calóricas da população portuguesa, englobando os vários grupos etários, era de 2300/calorias/dia.

ii O conceito de doenças da abundância atribui-se genericamente ao conjunto de doenças metabólicas degenerativas, tais como a diabetes, a obesidade, a hipertensão, as cérebrovasculares e alguns tipos de cancro, cuja incidência aumentou muito, em consequência de consumos alimentares excessivos, numa sociedade dita "pletórica".

Referências:

BARRETO, A. (Org.), (2000) A Situação Social em Portugal, 1960-1999, Vol.II,Lisboa, Instituto de Ciências Sociais.
FERRÃO, J. (1996), “Três décadas de consolidação do Portugal demográfico” in BARRETO, A. (Org.), (1996) A Situação Social em Portugal, 1960-1995, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais.
INE (Instituto Nacional de Estatística), (1999) Balanças Alimentares Portuguesas, 1960-69, 1990-97, Lisboa.
VALAGÃO, Maria Manuel (1998), “L` Alimentation au Portugal: le changement”, in Écologie et Politique- Sciences, Culture, Société n.º 23,(Ed.Especial) Alimentation et Écologie, Paris, OIKIA, pp.25-38.

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